O fio do presente

Há dias em que dou por mim numa intersecção entre o passado aspiracional (“quem me dera um dia”) e o futuro nostálgico (“foi tão bom naquele tempo”). Basta o clima aligeirar um pouco para o cérebro conseguir pensar, e sensação de viver num presente idílico instala-se no corpo. 

É como se levitasse. Pouso o pé quente na pedra fria, bebo água gelada, descanso nas sombras da casa. Por entre a frincha da porta, uma faixa de sol entrecortado pelas árvores borbulha luz com sombra, sombra com luz. Na contraluz, brilha a teia de aranha. O ar viaja entre janelas distantes, e as cortinas, por instantes, também: como se estendessem a mão pelos espaços.

Continue a ler “O fio do presente”

Sopa de letras

Hoje fui à natação. Ao afundar-me na água amena, o corpo respirou de alívio. Deixei-me ali pairar, indefinidamente, protelando os crawls, os bruços e as costas. Por breves momentos, nada nadei.

Os dias estão tórridos, mas pela casa também há pouco refúgio. Os esquemas de ventoinhas e correntes de ar só nos ajudam até certo ponto. As galinhas passeiam-se de bico aberto. O computador parece que vai levantar voo, tal é a ânsia de se refrescar. Ontem quis escrever um texto e nem conseguia concentrar-me: as palavras borbulhavam no caldo do cérebro, como numa sopa de letras.

Só me vinham à cabeça as águas da praia da Póvoa, e no quanto me apetecia dar um mergulho e sentir aquela chapada de vida. Por falar nisso: este sábado esteve bom tempo por lá.

Continue a ler “Sopa de letras”

Ciclos e contraciclos

Quando eu era miúdo, não era fã das aulas de História. Não me entendia com os reis, com as datas, as tensões e as revoluções. Quanto mais informação me davam, mais me abstraía. Quando surgiam testes a essa disciplina, a procrastinação levava-me a estudar na véspera um volume impossível de páginas em atraso. As matérias avolumavam-se e confundiam-se. Nas respostas tentava engrossar ao máximo o que tinha retido, mas os resultados espelhavam a minha ignorância. Sempre fui criativo e gostei de escrever, mas nas aulas de História debatia-me com os textos maciços e os monólogos intermináveis.

Continue a ler “Ciclos e contraciclos”

Pedra sobre pedra

As manhãs recebem-nos de braços abertos, o sol primaveril desenhando os muros sobre o alcatrão. Hortas surgem ordeiras e aprumadas, as suas fileiras demarcadas por garrafas de plástico em paus ao alto — lembram-me do quintal de um amigo do meu avô, na Póvoa, na rua das Hortas. Ele delimitava os seus canteiros com garrafas de vinho enterradas na terra, as suas bases ao alto. Desta feita, formava carreiros com rodinhas côncavas de vidro multicor. Nem o meu avô, nem o seu amigo, nem o quintal com as garrafinhas sobreviveram.

Lajes de pedra dormem ao sol, quentes, sob estendais vazios. Gatos vigiam-nos de longe, cães de perto, humanos de passagem. O autocarro da Marques faz inversão de marcha, carregado de estudantes para as escolas de Viseu. Do tractor vermelho, salta um senhor munido de uma enxada, que nos dá o bom dia. Acelera o carro da padaria, abranda o carro da associação. Pássaros deixam-se enganar por corvos postiços e tiras de alumínio ao vento. Ao longe, ouve-se um galo esganiçado — que acorda sempre a uma hora diferente.

Continue a ler “Pedra sobre pedra”

A ordem da bicada

Antes de mais, devo a esta página um pedido de desculpas pelo meu atraso — atropelada pela confusão dos trabalhos, a partilha desta segunda-feira fugiu-me da mão, mas eis-me rejuvenescido e cafeinado, prontíssimo para consertar a omissão.

Nauta dos vídeos, eis-me novamente em terra firme! Para mim e para a Mari foram duas semanas de viagem, e já sentíamos saudades das nossas penudas e das suas galinhodinâmicas. E porque já passou algum tempo desde que vos macei a escrever sobre elas, trago novas sobre a Guerra dos Tronos da Capoeira.

Tudo corria bem no nosso quintal, até há uns meses a poedeira cinzenta (a líder) começar a ter o papo muito inchado. Depois de nos informarmos, começámos a dar-lhe um antifúngico e a isolá-la pontualmente, a massajar-lhe o papo e depositar um antibiótico pela água. O problema aparentemente resolveu-se, o papo esvaziou, e ela voltou à sua actividade normal.

(Tudo isto, segundo uma senhora que vende galinhas no mercado de Matosinhos, podia ser resolvido em segundos com um cortar do pescoço).

Continue a ler “A ordem da bicada”